Eu não me lembro quando é o aniversário do meu pai
Sei exatamente quando minha mãe nasceu. Também me lembro da data da minha irmã — perigosamente próxima da minha — e a da minha esposa, idem. Mas não consigo, por mais que tente, lembrar quando é o aniversário do meu pai.
Isso não é de hoje. Desde adolescente (talvez desde criança) eu tinha dificuldade de lembrar, e só ficava ciente do evento quando a data estava próxima e começavam a se discutir presentes e comemorações. Eu não sei o ano e, consequentemente, não sei quantos ele teria hoje se estivesse vivo. Não sei o dia. O mês, fico em dúvida entre agosto e setembro — mas acho que é setembro.
Ele era médico, e atuava em municípios próximos de São Paulo. Na minha vida de frequentar a escola durante a tarde, isso significava praticamente não encontrar com ele durante a semana porque quando eu acordava, ele já tinha saído. Quando eu ia dormir, ele ainda não tinha voltado. Acordar por acaso no meio da noite para ouvir o barulho das chaves do carro sendo colocadas em cima da mesa do escritório era algo como ganhar na loteria. Os encontros, portanto, ficavam para os os finais de semana. A programação normal envolvia pedir pizza enquanto assistia a Escolinha do Professor Raimundo, no sábado à noite, e visitar a casa da minha avó (mãe dele) no domingo de manhã. Minha mãe às vezes acompanhava, às vezes não.
Meu pai gostava muito de computadores, e se importava muito com a Sociedade Esportiva Palmeiras. Costumava botar o hino do time pra tocar bem alto, numa vitrola de casa, para o vizinho do apartamento de cima, Corinthiano, poder ouvir quando “ a gente” ganhava. Numa dessas comemorações, ele resolveu estourar o rojão apontando ele para fora de uma das nossas janelas, e quase explodiu a cabeça da avó da família acima. Eu fui perdendo o interesse por futebol com o tempo, substituindo-o por games e Magic the Gathering. Um dia ele foi num jogo com um primo meu, conseguiu uma camisa autografada por vários jogadores e, na volta pra casa, fez um comentário passivo-agressivo sobre eu ter saído com a minha mãe naquele dia.
Ele nunca se interessou nem por games — com exceção de Side Pocket, no Mega Drive — muito menos por Magic the Gathering. Mas confesso que me comprava uns presentes caros de vez em quando.
O Doutor Mucioli, como era conhecido, era um grande profissional e um cara bastante humilde. Ele sempre atuou em áreas mais pobres aqui da região, e ao mesmo tempo que tinha vários amigos literalmente ricos, eu lembro de vê-lo não só lidando com todo tipo de pessoa, mas também sendo carinhoso, atencioso. Amigo, mesmo. De ir na casa de não sei quem, tomar café, conversar e tudo mais. Às vezes eu acompanhava ele, e fico feliz por ter tido essas oportunidades de sair da nossa bolha. Uma vez ele estava fazendo a barba, quando eu perguntei para ele sobre a Ditadura. Ele me respondeu: “pelo menos naquela época, as pessoas tinham respeito”.
Meu pai até que insistiu bastante, até eu desistir de aprender a andar de bicicleta.
A morte dele foi desagradável, para todos os efeitos. Uma doença foi levando ele aos poucos durante o que, na minha cabeça de pré-adolescente, parecia muito e pouco tempo. Meu pai doente, indo e vindo de hospitais, foi meu “novo normal” do fim da década de 1990. Ele foi ficando mais fraco, mais fraco, até que… começou a se esquecer.
No fim da vida, deitado na minha cama (eu passei a dormir em outro lugar), meu pai perguntava qual era o nome do cachorro que a gente tinha. Nunca tivemos um. Eu ficava sentado no chão encarpetado, na esperança de manter uma conversa. Mas eu, minha irmã, e minha mãe estávamos sumindo da mente dele. Numa terça-feira (ou talvez numa quinta) eu acordei e vi que estava atrasado pra escola. Eu tinha prova. Fui até a cozinha e encontrei minha avó materna ali sozinha, sentada à mesa me esperando. Ele tinha ido embora de vez.
Enquanto os familiares iam e vinham, eu aprendi a ser rancoroso.
Ele não foi um grande pai, e nunca nos entendemos. Minha mãe diz que, se ele estivesse vivo, nós acabaríamos brigando muito. É bem possível. Também chuto que daí veio minha vontade de nunca ter filhos.
Eu queria terminar numa nota positiva. Poderia dizer que ter tido ele na minha vida mostrou que existe ruindade na bondade e vice-versa, ou algo assim. Estou tentando me convencer de que isso me influenciou positivamente, de alguma forma. Talvez não haja moral.
Só me incomoda um pouco ainda não conseguir me lembrar quando era o aniversário dele.